Hoje, por incrível que pareça, minha mãe e meu irmão não foram ao cemitério. Acho engraçado a devoção de ambos, até hoje, ao meu pai. É um rito ir lá no aniversário dele, dia de finados e no dia da morte.
Um rito que eu nunca participo.
Meu pai foi um bom pai. Não brigava muito com a minha mãe, nunca deixou faltar nada em casa, embora fosse de uma avareza peculiar. Me deu a educação e ajudou na formação do caráter que tenho hoje. Mas o Dia dos Pais nunca teve a mesma euforia do Dia das Mães. Sempre faltou afeto. Sempre faltou carinho.
Meu pai, embora presente, era ausente.
E isso nem tem nada a ver com a preferência, clara, dele pelo meu irmão. Eles eram parecidos em muitos aspectos, já eu, sempre fui mais apegado a minha mãe. Lembro de poucas vezes que meu pai demonstrou carinho por mim ou mesmo pelo meu irmão.
Apesar dos apesares, ele era um bom pai. Não mereceu a morte que teve, definhando em 3 meses, por um câncer que corrompeu primeiros os pulmões, depois o cérebro. Lembro como se fosse hoje, domingo, eu chegando do shopping com meu irmão e meu pai no sofá, como se nada tivesse acontecendo, enquanto minha mãe estava no quarto, falando ao telefone bastante nervosa. Meu pai simplesmente tinha esquecido o caminho de casa voltando de uma festa que eles foram.
Nessa época ele era kombista, ficou 2 anos desempregado (e vivemos mantendo o mesmo padrão de vida só com a poupança que ele tinha feito, a avareza teve um porque, afinal), o estresse era imenso. De repente ele só estava muito cansado, talvez tomasse algum remédio e ficaria tudo bem. Tolinho, eu. Tinha apenas 13 anos, não sabia nada da vida.
Dia a dia, minha mãe o viu definhar. Ele foi internado no dia seguinte. Eu o visitava com pouca frequência, minha mãe demorou um tempo pra me contar que, provavelmente ele nunca se recuperaria e não gostava que eu o visse daquela maneira. Eram sempre visitas emblemáticas. A primeira foi depois de uma semana, ele levantou, me abraçou, disse que estava com saudades. Na segunda, ele já não se levantou com a mesma desenvoltura, já não estava tão parrudo, visivelmente mais magro. Na terceira, ele já não conseguia me abraçar e suas faculdades mentais já pareciam abaladas, a fala era difícil, sofrida. As frases não terminavam, as palavras eram trocadas.
Na quarta, as memórias já tinham sido afetadas. Ele lembrava vagamente de mim. A única memória que nunca foi apagada foi a de minha mãe. Fiquei um mês e meio sem vê-la, enquanto ela ficava 24/7 do lado meu pai.
Veio a cirurgia, e ele começou a se recuperar. Voltou pra casa, já andava, a fala não era mais comprometida. Ficou uma ou duas semanas e teve uma convulsão. Eu não estava em casa. Como sempre, fui poupado até o último segundo. Ficou algum tempo no hospital e voltou para casa muito mais abalado. Até esse momento, ele não sabia que tinha câncer. Quando descobriu, desistiu. Desistiu de tentar viver. Lembro de uma conversa que tive com ele, implorando-o para não desistir.
A última já foi no CTI. Minha mãe achava que talvez já estivesse na hora de se despedir. Ele tentou conversar com meu irmão, houveram algumas trocas de carinho. Quando eu fui, ele não conseguiu falar. Chorou. E eu, claro, idem.
A última imagem que tenho do meu pai vivoé ele na cadeira de rodas, entubado, olhando pra mim, como que por pena e chorando.
31 de agosto foi o primeiro dia de internação. 15 de dezembro, o último.
A notícia veio e me derrubou. Nesse meio tempo, eu não sentia, realmente, falta do meu pai. Talvez porque ele estivesse perto, mas longe. Chorei muito no enterro. Depois, nunca mais. É como se eu tivesse me anestesiado, nunca senti saudade, falta ou tristeza por ele.
Enquanto minha mãe e meu irmão tiveram seu luto, eu tive o meu. Queria sair, queria ir ao shopping, à praia. Fazer qualquer coisa, menos ficar em casa. O engraçado é que sempre me julgaram muito por isso. Me julgam até hoje, aliás, porque eu nunca chorei pelo meu pai, porque eu não sinto saudade, porque eu não quis ir na missa de sétimo dia, porque eu nunca fui ao cemitério depois do enterro.
O luto é uma coisa individual, o meu foi simplesmente extraído. Acho que não sou capaz de me acabar de chorar pela morte de mais ninguém. É como se o meu luto já tivesse passado pra sempre. Eu mesmo me sinto um pouco mal por isso. Não quer dizer nem de longe que eu não amava meu pai. Sim, muito. Mas, é uma questão lógica, eu entendo que não há razão justificável para minha aparente frieza.
Mas, aqui em casa, o luto não é opcional, é obrigatório. E eu me vejo sempre disfarçando emoções pra não ter que dizer que o papel do meu pai na minha vida acabou dia 31 de agosto de 2004. Que as lembranças foram mortas no dia 15 de dezembro do mesmo ano. Que, pra mim, o meu pai morreu, de fato, e não voltará nunca mais.
Nem em pensamento.
EDIT: Reparei agora que esse é o post número 45. Essa foi a idade que meu pai morreu. Curioso, não?